A mais antiga referência a um topónimo abrangido geograficamente pela freguesia de Arcos, o Castro de Argifonso, encontra-se no Tombo do Mosteiro do Salvador de Moreira.
Este documento, redigido a 18 de Outubro de 985 (xv kalendas nouembris era xxiii super millesima), regista a venda da herdade de Figueiró (fiqueirola), localizada sob o Castro de Argifonso na margem do Ave. A venda é feita por Eilo, que a recebeu de seus pais, a Vermudo Trudines pelo valor de vinte soldos.
É de notar desde já que o “Castro de Argifonso” a que se refere este e alguns outros documentos posteriores será relativo, provavelmente, a toda a extensão de construções galaico-romanas que se poderiam observar desde a Cividade de Bagunte, inclusive, até bem perto do rio Este. A distância entre os sítios arqueológicos conhecidos atualmente como Cividade de Bagunte e Castro de Argifonso distam apenas algumas centenas de metros entre as suas acrópoles. Estes documentos anteriores à nacionalidade mencionam, quase aleatoriamente, o Castro de Argifonso, o monte de Bagunte, ou a Cividade, para se referirem a qualquer propriedade nesta zona entre o Ave e o Este. Tome-se como exemplo o caso do documento acima partilhado, onde a localização da herdade de Figueiró tem como referência o Castro de Argifonso e não a Cividade, mais próxima de Figueiró, topónimo que chegou aos nossos dias como Figueiró de Baixo e Figueiró de Cima, lugares da freguesia de Bagunte situados junto ao rio Ave.
Em 25 de Maio de 10121, 10522, ou talvez noutra data3 é vendida uma herdade na uilla fornel subtus kastro argifons4.
Esta villa é identificada no lugar de Fornelos, freguesia de Outeiro Maior, também mais próxima da Cividade do que do Castro. O vendedor é o mesmo, ou homónimo, do que se encontra posteriormente num documento de 1080, Gonçalo Raupares.
Em 1056, a já referida villa de Figueiró (Fiqueirolo) e a sua vizinha Segemondi, localizadas subtus Kastro Argefonsi inter Abe et Aleste são vendidas5. Porque não indicar como referência a Cividade, geograficamente mais próxima? O topónimo “Segemonde” não é atualmente fácil de identificar. Será que a villa fiqueirola não se refere à Figueiró de Bagunte, mas sim a um outro lugar cujo topónimo se perdeu no tempo, mais próximo do Castro de Argifonso do que da Cividade? Não é fácil assumir que existissem dois lugares homónimos tão próximos “entre o Ave e o Este”.
Em 1080 desfazem-se as dúvidas6. Mais uma vez, a villa de Figueiró é vendida. A uilla (…) fikeirola (…) subtus kaslro argefonsi discurrente rribulo aue tem finalmente as suas fronteiras descritas: uilla bocumti (centro de Bagunte), uilla celteganus (Santagões) e uilla lamesinus (Lamesinhos, futura Quinta da Cunha, na fronteira entre Parada e Bagunte)7. É omitido aqui o limite meridional, que seria o rio Ave, já referido no início do documento, onde se inserem nesta venda as azenhas. Fica assim evidente que a villa de Figueiró é, de facto, o lugar no sul da freguesia de Bagunte. Este documento é o primeiro a referir simultaneamente os topónimos Argifonso e Bagunte.
Por outro lado, na escritura de venda da villa gacin em 9718, referente ao lugar de Gacins de Outeiro Maior, o ponto de referência é o monte Bogonte probe ribulo Ave, tal como em 9739, na venda da uilla zelsoni (na Junqueira) localizada subtus monte bogonti. Vários outros documentos escolhem a villa de Bagunte ou a Cividade, sob diversos topónimos, como referência nas décadas seguintes.
Apenas em 1102 se encontra a distinção entre as duas povoações castrejas, no documento de venda de uma propriedade em Moldes, lugar da freguesia de Arcos: Ego Pelagio Suarizi (…) ut facio a tibi Gotiere Suarizi cartula uendictjonis per scriptura firmitatis de ereditate mea propria que aueo en uilla Moldes in loco predicto ad ila Olibar subtus Castro Aregefonsi et ciuitas Bocunti discurrente ribulo Alister terridorio Bragarensis10. Sendo mais próxima do Castro de Argifonso do que da Cividade de Bagunte, aqui faz todo o sentido a dupla referência: perto não só do Castro, mas também da mais proeminente Cividade.
E onde se localiza então o Castro de Argifonso? Centenas de anos se passaram até que se iniciasse o estudo das antigas civilizações, para obtermos uma resposta credível.
Na Corografia Portugueza, de 1706, o Padre António Carvalho da Costa descreve assim o Castro e Cividade: “Junto do rio Deste acima da Ponte de Arcos estão vestígios de fortificação, que se comunicavão por estradas encubertas com outra mayor no alto do monte, a que inda chamão a Cividade, & as ruínas mostrão qual seria sua fortaleza”11. O autor não identificou os “vestígios de fortificação” como sendo o Castro de Argifonso, mas com o conhecimento atual é percetível que seria essa a sua localização.
Nas Memórias Paroquiais de 1758 de Arcos12 não se encontra menção a qualquer indício de ruínas, apenas dois topónimos de lugares da freguesia que se podem identificar como o topo (Castelo) e sopé nordeste (Gelfonso) do monte onde se situa o Castro. Por outro lado, nas Memórias Paroquiais de Bagunte13 é óbvia a distinção entre a Cividade e o Castro: “No monte da Cividade asima referido houve antiguamente hua Cidade chamada Brachalense ou por outro nome de Azeroso pella parte do Norte lhe ficava por sua defensa hum castello que se chamava de Argifonso, e hoje com pouca corrupção se chama o Castello so apparecem hoje alguns vestígios”.
Apenas no início do ano de 1941 surge um artigo que relaciona as ruínas existentes no monte da freguesia de Arcos com o Castro de Argifonso dos documentos medievais. O autor, subscrito apenas como “A.” (Padre Agostinho de Azevedo), publica textos em vários números do único periódico semanal de Vila do Conde dessa época, o jornal “Renovação”, onde relata vários episódios relacionados com a História do concelho de Vila do Conde. A forma de exposição dos artigos é curiosa, já que é de natureza familiar, fantasiando conversas entre pai e filho onde o primeiro tenta elucidar o segundo. A 25 de Janeiro de 1941, é publicado o artigo intitulado “Arcos e o seu Castro”14, onde “Senior” revela a “Junior” que poucos dias antes foi localizado o Castro da freguesia de Arcos. A pedido de um professor universitário da Universidade de Coimbra, o autor terá sido incumbido da tarefa de procura da sua localização geográfica, pedindo apoio a alguém mais conhecedor dos locais em questão: o Padre Fontes (José Gonçalves de Azevedo Fontes, 1884-1946), da freguesia de Bagunte. Em poucos dias obteve a resposta:
“Ao norte da Cividade de Bagunte e no seu prolongamento há um sítio chamado Alto dos Castelos na freguesia de Arcos, lugar de Casais com a elevação superior a 200 metros. No fundo desta eminência há duas casas de lavoura mimosas e férteis denominadas Gifonso de Baixo e Gifonso de Cima; e outras duas chamadas Castelo de Baixo e Castelo de Cima. Na casa do Gifonso de Baixo, onde nasceu o actual Arcebispo de Braga, informaram que um indivíduo já falecido e algum tanto sabedor de coisas antigas, dizia que o nome daquele lugar era antes Agrifonso.”
Fica aqui pela primeira vez localizado o Castro de Argifonso, descrição secundada poucos anos mais tarde por Fernando Russell Cortez. O ilustre arqueólogo publica em 1946 (em castelhano15) e 1949 (em português16), um artigo acerca do Castro de Argifonso, onde revela que tomou conhecimento da sua localização em Agosto de 1944, durante as suas escavações na Cividade de Bagunte. A descrição de Russell Cortez é quase uma reiteração da publicação do jornal “Renovação”, embora se verifique que o autor se apropria da descoberta de um novo sítio arqueológico sem referência ao artigo do jornal. É pouco provável que o faça por desconhecimento, já que ele próprio era contribuinte do “Renovação”, inclusivamente congratulando o Padre Agostinho de Azevedo, coincidentemente no número em que se assinala o falecimento repentino do pároco, pelas suas contribuições para o estudo das povoações castrejas do concelho de Vila do Conde17.
Cortez refere o Alto dos Castelos, também conhecido por Alto dos Caramouchos, as duas casas agrícolas denominadas Gifonso de Cima e Gifonso de Baixo, tal como o antigo topónimo corrupto “Agrifonso”. Estas observações são depois reforçadas pela instrução inerente à sua profissão.
Uma breve visita ao local onde um operário encontrou fragmentos de tégula, foi suficiente para Russell Cortez identificar várias construções e vestígios arqueológicos. Desde logo reconheceu uma necrópole romana, de baixa época, assim como vestígios de choças circulares e seus alicerces, no lado interior de uma muralha. Em termos de materiais de menor dimensão, foram identificados fragmentos de tegulae e imbrices, variado espólio cerâmico, louças com mais ou menos ornamentação e de espessura variada, espólio metálico, tal como argolas, pregos e um alvião, assim como dormentes e andadeiras de moinhos manuais. Russell Cortez, demonstrando acreditar que este sítio arqueológico terá sido ocupado entre a Idade do Bronze e as invasões germânicas, revela a sua preocupação com a preservação deste património arqueológico em dois breves parágrafos:
“Merecem estas ruínas um pouco de atenção, pois o espólio exumado promete ser, de certo modo, abundante e esclarecedor duma época avançada desta cultura. Não podemos, porém, esperar o encontro de numerosos especimes de mobiliário intacto ou razoàvelmente conservado, uma vez que o cômoro tem sofrido inúmeros maus tratos pelos lenhadores e montantes que ali têm exercido os seus misteres. Um pequeno, mas metódico, trabalho salvará o que resta desta antiga povoação que seria antanho um prolongamento arrabaldino da Cividade de Bagunte.”
As preocupações de Russell Cortez podem ser transportadas para a atualidade. Quase sete décadas após a sua investigação e pequena escavação no Castro de Argifonso, o sítio arqueológico encontra-se cada vez mais descaracterizado. Desde aí até aos dias de hoje, o terreno permanece explorado como área florestal, com todas as tarefas necessárias ao exercício desta atividade, desde logo a conveniência da abertura de caminhos e a periódica inevitabilidade do revolvimento das terras nos períodos de corte de vegetação.
Nos terrenos da acrópole e zonas de derrube, são facilmente visíveis fragmentos cerâmicos e de tégula. Verifica-se a existência de algumas construções, mas já sem o aparato descrito por Russell Cortez.
Seria importante tentar preservar, na medida do possível, o que resta da maior povoação subalterna da Cividade de Bagunte, que terá eventualmente prosperado com a menor necessidade de ocupação de terrenos com cota mais elevada e consequente aproximação dos cursos de água, decorrente de alguma estabilização política durante a ocupação romana.
- Portvgaliae Monvmenta Historica – Diplomata et Chartae Vol I – doc. CCXVIII p.133 – Herculano lê era milesima quinquagesima (1050 da Era de César, 1012 do calendário cristão), o que parece manifestamente errado. Ver nota 3.
- Portvgaliae Monvmenta Historica – Diplomata et Chartae Vol I – doc.CCCLXXXI p.232 – um treslado de data posterior, possivelmente também com uma errada leitura ou transcrição da data.
- A data exposta no original é de I2XɅ, equivalente a 1060 ou 1065 (Era de César), caso se considere o Ʌ como um símbolo de final da data ou com o valor de 5, tal como a numeração etrusca. O “I” indica o milénio (1000), e o “2” é sem dúvida um “L” uncial. O pergaminho do tombo do Mosteiro da Junqueira será então do ano 1022 ou 1027 da Era Cristã.
- Tombo do Mosteiro de São Simão da Junqueira – Documentos relativos à instituição monástica, ao exercício da jurisdição, às igrejas, e à administração das propriedades – maço 1, doc.17
- Tombo do Mosteiro do Salvador de Moreira – Cópias modernas de documentos originais L39 p.49
- Tombo do Mosteiro do Salvador de Moreira – Cópias modernas de documentos originais L39 p.77v
- José Ferreira – Páginas da História de Bagunte – Vol. I p.39
- Portvgaliae Monvmenta Historica – Diplomata et Chartae Vol I – doc.CIII p.65
- Portvgaliae Monvmenta Historica – Diplomata et Chartae Vol I – doc.Cx p.69
- Rui Pinto de Azevedo – Documentos Medievais Portugueses (documentos particulares) Vol. 3 (AD 1101-1115) – doc.60 p.55 (1943)
- P. Antonio Carvalho da Costa – Corografia portugueza, e descripçam topografica do famoso reyno de Portugal, Tomo Primeyro (1706) p.321
- Memórias paroquiais, vol. 4, nº 47, pp. 255-258
- Memórias paroquiais, vol. 6, nº 4, pp. 17-26
- Renovação nº 109 (25/Jan/1941) p.3
- Russell Cortez - El Castro de Argifonso – Archivo Español de Arqueología Vol. 19, Ediç. 63, (1946) pp.149-155
- Russell Cortez – O Castro de Argifonso – Trabalhos de Antropologia e Etnologia Vol. 12 N.º 3-4 (1949) pp.270-288
- Renovação nº 233 (17/Jul/1943) p.3