Bajoca ou Beijoca?

Sérgio Paiva – 17/04/2023

largo da bajoca 2023
Largo da Bajoca em 2023

Entre o centro da cidade de Vila do Conde e a zona ribeirinha, podemos encontrar uma zona designada por “Bajoca“, nome ainda hoje preservado na toponímia local pelo Largo da Bajoca, no encontro entre a Rua do Rancho da Praça, Rua Dr. Elias de Aguiar, Rua Joaquim Maria de Melo e Travessa Joaquim Maria de Melo.

Mas será “Bajoca” o topónimo correto? Vários habitantes na atualidade asseguram que o topónimo mais adequado seria “Beijoca“, termo popularmente utilizado para referência a esta zona desde o dealbar do século XX. Por esses tempos poder-se-iam encontrar bastantes tabernas nas imediações, sendo um local apetecível para namoriscar, longe dos olhos do patriarcado ultraconservador da época e com uma estreita relação toponímica com a vizinha Rua dos Prazeres.

José Pedro Machado fornece-nos ambas as entradas no seu “Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa”. Enquanto reconhece desconhecer a origem de Bajoca (e similares, como Bajouca ou Bajouco)1, associa o topónimo “Beijocas” a “aquele ou aquela que aprecia muitos beijos ou que os dá com frequência”.

placa toponímica largo da bajoca
Placa toponímica “Largo da Bajoca” – 2017

Anos mais tarde, Armando de Almeida Fernandes lança uma das suas últimas obras: “Toponímia Portuguesa (Exame a um Dicionário)” é uma resposta muita assertiva, argumentativa e corretiva à obra de José Pedro Machado, tendo como finalidade “simplesmente mostrar os seus erros e equívocos”. Tal como em várias outras entradas, pode-se verificar em Beijoca(s)2 uma enorme crítica à obra examinada, neste caso afirmando que “chega a ser surrealista”. Na sua opinião, o topónimo em questão e outros iniciados em baj- ou baz-, como por exemplo Bajanca ou Bazorra, derivam de basa, um vocábulo pré-romano que denomina um pedregal, um local rochoso. Esta definição é apoiada pelo historiógrafo Jofre de Lima Monteiro Alves3.

Analisando os diversos livros de registos municipais e paroquiais, torna-se óbvio que “Beijoca” é uma simples corruptela popular de “Bajoca”, sendo este o topónimo que se encontra ao longo dos séculos nos documentos oficiais. O ditongo “ei” não se encontra em qualquer registo, nem sequer um único “e” que pudesse apontar para “Beijoca”. Sem uma exaustiva partilha, antes pelo contrário, já que são inúmeras as referências ao longo dos séculos, atentemos apenas a algumas referências à antiga rua e lugar que deu nome ao Largo e à Casa da Bajoca, erigida na primeira metade do século XVII por Francisco Freire e Maria de Sá Herédia, muito após as primeiras referências à “Bajoca”:

Na ata da vereação de 19 de Março de 1509, encontra-se desde logo a dupla referência aos “vizinhos da Bajoca” e “rua da Bajoca”, exatamente com a ortografia que chega aos dias de hoje.

Arquivo Municipal de Vila do Conde – Ata da vereação de 1509/03/19 – NI 16 fl.149

Em Abril de 1536, procede-se ao batizado de uma filha de Manuel Gonçalves, “da Baioca”. Note-se que apenas no final do século XV, por influência de Antonio de Nebrija, e no século XVI por Gian Giorgio Trissino e Pierre de la Ramée4, se começa a difundir a distinção fonética entre i e j, tal como u e v. Por terras lusas, e já bem imergidos no século XVII, ainda estava Álvaro Ferreira de Vera a questionar a resistência à distinção ortográfica entre as duas vogais e duas consoantes5. As letras j e v, as últimas adicionadas ao alfabeto português (excluindo k, y e w), são designadas por letras ramistas, em homenagem ao escritor francês. Durante séculos, o j era apenas utilizado como uma mera variação estética do i, em especial nas datas escritas em numeração romana.

Arquivo Distrital do Porto – Registos Paroquiais de Vila do Conde – Batismos – livro 1, fl. 7v

Noutro batismo, a 24 de Janeiro de 1539, surgem como compadres Baltasar Lopes e Catarina Rodrigues, “da Bajoca”.

Arquivo Distrital do Porto – Registos Paroquiais de Vila do Conde – Batismos – livro 1, fl. 29v

A 4 de Julho de 1566, regista-se o casamento de um filho de Pedro Gil, da “rª da Bajoqua”.

Arquivo Distrital do Porto – Registos Paroquiais de Vila do Conde – Casamentos – livro 16, fl. 86v

A 25 de Maio de 1610 regista-se o óbito de Amador Francisco, “da Baioqua”.

Arquivo Distrital do Porto – Registos Paroquiais de Vila do Conde – Óbitos – livro 21, fl. 32

A 2 de Setembro de 1640 regista-se o óbito de Catarina Carneiro, “da rua da bajoqua”.

Arquivo Distrital do Porto – Registos Paroquiais de Vila do Conde – Óbitos – livro 22, fl. 12

A 10 de Março de 1690 regista-se o baptismo de Luís, filho de Manuel de Lima e de Maria Gomes, da “Rua da Bajoqua”. Foram padrinhos Manuel Gomes e Margarida Salvadores, da “Rua da Bajoqua”.

Arquivo Distrital do Porto – Registos Paroquiais de Vila do Conde – Batismos – livro 5, fl. 75v e 76

Em registos consecutivos, nascem a 20 e 24 de Junho de 1778 duas Marias. A primeira filha de Francisco Lopes e de Mariana Luiza; a segunda perfilhada por Roberto da Costa Pereyra e Maria Thereza. Ambos os casais “da Rua da Bajoca”.

Arquivo Distrital do Porto – Registos Paroquiais de Vila do Conde – Batismos – livro 28, fl. 112v

Em 1837, aparece como testemunha de uma dispensa matrimonial Manoel de Oliveira, pescador, morador na “Rua da Bajoca”.

Arquivo Distrital de Braga – Mitra Arquiepiscopal de Braga – Dispensas matrimoniais – A1976

Também nas monografias, nomeadamente nas monografias etnográficas que tendem a revelar uma maior proximidade com a cultura e costumes locais, se observa invariavelmente a utilização do termo Bajoca, pelos autores José Augusto Ferreira6, Maria Teresa de M. Lino Netto7, João dos Reis8, António Ventura dos Santos Pinto9, Maria Armanda Pereira Nunes Gaiteiro Ribeiro10, António do Carmo Reis11 ou Artur do Bonfim12.

São igualmente relevantes as publicações de Horácio Marçal e Carlos Ouvidor da Costa nos jornais locais. Horácio Marçal refere o “Largo da Bajoca” um par de vezes, na sua publicação acerca dos topónimos “Rua da Senra”, “Rua do Cidral” e “Largo Guilherme Gomes Fernandes”13. Carlos Ouvidor da Costa também repete o topónimo Bajoca por várias vezes, referindo-se ao Largo e à Casa, quando descreveu a Rua da Senra de antanho e os seus arredores14.

Em contrapartida, apenas encontrei referência à “Beijoca” em dois artigos nos periódicos vilacondenses, podendo seguramente haver mais. A notável revista “Illustração Villacondense” publica no seu penúltimo número um artigo sobre a “Casa da Beijoca”, com fotos de Joaquim Adriano legendadas repetidamente como “Beijoca”15. Esta incorreção deve-se provavelmente ao facto de o autor do artigo, o ilustre heraldista Amadeu de Castro e Solla, natural de Braga, desconhecer naturalmente a toponímia vilacondense. Associe-se isto à inexistência da Rua da Bajoca nesta época (veja-se mais à frente) e temos então a explicação para o equívoco toponímico que chega aos dias de hoje.

illustração 35 p.1 beijoca 1
Illustração Villacondense nº 35 p.1 – Janeiro de 1913
illustração 35 p.1 beijoca 2
Illustração Villacondense nº 35 p.1 – Janeiro de 1913

Na seguinte (e última) publicação deste periódico, incorre-se no mesmo erro, na legendagem de uma fotografia do “Largo da Beijoca”. Também se encontra no jornal “Renovação” a mesma definição para o lugar e casa homónima, num artigo que incide na genealogia dos galegos Freires de Andrade, ascendentes do fundador da “Casa da Beijoca”, aquando da geminação de Vila do Conde com o Ferrol16. Note-se que a publicação é baseada no artigo já referido da Illustração Villacondense, tendo possivelmente daí advindo o erro.

illustração 36 p.3 beijoca 3
Illustração Villacondense nº 36 p.3 – Fevereiro de 1913

Antes de tudo isso, pode-se encontrar um curioso artigo respeitante ao “Agostinho da Bajoca” e o desaparecimento do seu espólio17, ainda no século XIX, anterior à corruptela incentivada pela Illustração Villacondense.

Pode-se ainda associar a definição acima exposta (pedregal) a um outro topónimo perdido: a Rua dos Penedos, situada nas imediações da Bajoca. Após estudar superficialmente alguns registos dos arquivos disponíveis online, não consigo assegurar a localização exata das duas antigas ruas (da Bajoca e dos Penedos). Embora as referências que se podem encontrar sobre estas ruas sejam abundantes, especialmente nos registos paroquiais, são escassas as que ajudam a identificar a sua localização…

largo da bajoca 2009
Largo da Bajoca em 2009 – imagem Google Street View

Ainda assim, quanto à Rua dos Penedos, parece consensual que seria equivalente à atual Rua Dr. Elias de Aguiar, entre o Largo da Bajoca e o Largo do Ribeirinho18 19 20, provavelmente relativo (não só mas também) ao “Apontador das casas de Vila do Conde” do ano de 1674, onde se refere: “Segueçe a Baioca, e ao diante a Rua dos penedos no qual estão húas cazas térreas foreiras q he o fim de todas”21. O fim de todas seria o atual Largo do Ribeirinho.

Continuando: “Joseph Francisco Miguella, paga da cortinha do espadanal q esta pegada as suas casas em que vive a entrada da Rua vindo de Santiago, a qual cortinha foi de Catharina Carnʳᵒ”. A cortinha do espadanal seria então um quintal nas traseiras da Rua dos Penedos, atualmente Rua Dr. Elias de Aguiar, e a “Rua vindo de Santiago” seria uma ligação entre a “cortinha” e a capela, que se situava onde hoje se encontra o pavilhão do Parque de Jogos, atravessando o espaço onde se construiu a Alameda dos Descobrimentos.

largo da bajoca 2017
Largo da Bajoca em 2017, aquando do seu alargamento e demolição da casa na vertente norte do Largo – foto CMVC

Em relação à Rua da Bajoca, também não posso com absoluta certeza afirmar a sua localização. As referências que podem ser encontradas são relativas aos mesmos mapas referidos, criados já em pleno século XXI, com base noutros mapas não legendados. Segundo os autores, seria uma ligação entre a Rua dos Prazeres e a atual Rua Joaquim Maria de Melo. Ou seja, semelhante à atual Travessa Joaquim Maria de Melo mas mais a norte, por trás do edifício onde se encontra o Café Omega. Mais a sul havia uma outra ligação, que partia dos “Penedos” (Largo do Ribeirinho) e ia desembocar junto ao início da Calçada dos Prazeres. Essa antiga ligação seria o antigo Beco ou Viela dos Prazeres.

Concluindo…  É indiscutível que, historicamente, o lugar, largo, rua e casa sempre tiveram o nome de Bajoca, com algumas variantes arcaicas associadas à natural evolução da língua (Baioca/Baioqua/Bajoqua). Mas ninguém leva a mal se os locais, com todo o carinho, quiserem chamar “Beijoca” à Bajoca, apesar de ser inquestionavelmente uma baldroca…

  1. José Pedro MachadoDicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa – Vol. I p.206
  2. A. de Almeida FernandesToponímia Portuguesa (Exame a um Dicionário) p.71
  3. Jofre de Lima Monteiro Alves – A Origem dos Nomes da nossa Terra – VIII
  4. Modern Latin Spelling
  5. “Esta letra I, andou atégora com dous appellidos, de vogal, & consoante; fazendo igual, I, a je. Sendo assi que todos dizem, que um he curto, & outro comprido: & que de hum usariamos per vogal, & do outro per consoante. Pois porque não lhe daremos seu lugar apartado, assi como o he na pronunciação, & forma? Porque o proprio sohido de I, vogal he o destas dicções as primeiras syllabas, ira, imajem; & de j, o destas, jazmim, jejũar, joga.” – Álvaro Ferreira de VeraOrtographia ou Modo para escrever certo na lingua portuguesa (1631) f.10v
  6. José Augusto Ferreira – Villa do Conde e Seu Alfoz (1923) p.70
  7. Maria Teresa de M. Lino NettoA Linguagem dos Pescadores e Lavradores de Vila do Conde (1949) p.18
  8. João dos ReisCoisas do Passado (Gente Humilde) (1951) p.36
  9. António Ventura dos Santos PintoVila do Conde (1785-1800) As gentes e o Governo Municipal (2000) p.27
  10. Maria Armanda Pereira Nunes Gaiteiro Ribeiro Trabalho e quotidiano numa vila do litoral – Vila do Conde no século XVIII – (Volume I) (2002) p.36
  11. António do Carmo ReisVila do Conde na Época dos Descobrimentos (2006) p.65
  12. Artur do Bonfim – As Memórias de Artur do Bonfim (2009) p.70
  13. Horácio MarçalRenovação nº 1943 p.6 – 29/02/1980
  14. Carlos Ouvidor da CostaJornal de Vila do Conde (Caderno da Cultura) – 29/09/1989
  15. Conde de Castro e SollaIllustração Villacondense nº 35 p.1 – Janeiro de 1913
  16. R.P.Renovação nº 1630 p.5 – 14/04/1973
  17. O Ave nº 24 p.2 – 08/10/1899
  18. Maria Armanda Pereira Nunes Gaiteiro Ribeiro Trabalho e quotidiano numa vila do litoral – Vila do Conde no século XVIII – (Volume I) (2002) p.36
  19. Sub-domínio do site da CMVC – Vila do Conde Quinhentista
  20. Blog do Ateneu de Vila do Conde – História Toponímica de Vila do Conde
  21. Arquivo Distrital do Porto – Convento de Santa Clara de Vila do Conde – Apontador das casas foreiras desta vila 1674 fl.35
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