No extenso cartório do Mosteiro de Vairão, maioritariamente preservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, encontraram-se dois documentos curiosos redigidos a mando de Lourenço Fernandes da Cunha: o Mentio de Malefactoria e a Notícia de Torto, bastante similares no seu conteúdo.
O primeiro, escrito em latim, em que o cavaleiro se lamenta de atrocidades perpetradas direta e indiretamente pelo rei D. Sancho I, foi datado por Avelino Jesus da Costa do ano de 1210.
O segundo, posterior e de temática semelhante, tem como ofensores os filhos de Gonçalo Ramires, primos de Lourenço, tendo sido redigido entre 1211 e 1216. Esta Notícia de Torto é de extrema importância pelo facto de poder ser considerado o mais antigo registo escrito em língua portuguesa, ou, mais precisamente, em galaico-português. O testamento de D. Afonso II, de 1214, poderá ser posterior, sendo que outros aspirantes ao título, tais como o Pacto dos Irmãos Pais ou a Notícia de Fiadores, apesar de mais antigos (c. 1175), ainda apresentam uma avultada quantidade de termos em latim.
Segue-se a transcrição efetuada por Avelino Jesus da Costa – em 1992 (Os mais antigos documentos escritos em Português – Revisão de um problema histórico-linguístico).
[1] D(e) noticia d(e) torto que fecer(ũ) a Laurẽci(us) Fernãdiz por plazo que fec(e) Gõcauo
[2] Ramiriz antre suos1 filios e Lourẽzo Ferrnãdiz q(u)ale podedes saber: e oue au(e)r2 d(e) erdad(e)
[3] e dau(e)r, tãto q(u)ome uno d(e) suos filios da q(u)ãto podesẽ au(e)r d(e) bona d(e) seuo pater e fiolios seu
[4] pater e sua mater. E d(e)pois fecer(ũ) plazo nouo e cõuẽ uos a saber q(u)ale in ille se < e > m
[5] taes firmam(en)tos q(u)ales podedes saber3: Ramiro Gõcaluiz e Gõcaluo Gõca[luiz e]
[6] Eluira Gõcaluiz forũ fiadores d(e) sua irmana que o[to]rgase aqu[e]le plazo come illos.
[7] Sup(er) isto plazo ar fe[ce]r(ũ) suo plecto. E a maior aiuda que illos hic cõnocer(ũ), que les
[8] acanocese 4 Laurẽzo Ferrnãdiz sa irdad(e) p(er) p(lec)to 5 que a teuese o abate d(e) S(ã)c(t)o Martino
[9] que como uẽcesẽ 6, que asi les dese d(e) ista o abade. E que nunq(u)a illos lecxasẽ
[10] daquela irdad(e) 7 sẽ seu mãdato. Se a lexarẽ ĩtregarẽ ille d(e) oot(r)a que < li > plaza.
[11] E d’au(e)r que ouer(ũ) d(e) seu pat(e)r nu[n]q(u)ã 8 se 9 li ĩd(e) der(ũ) parte. Deu 10 dũ Gõcau11
[12] o a Laurẽco Fernãdiz e Martĩ Gõc[a]luiz XII12 casaes por arras d(e) sua auóó.
[13] E filar(ũ)li illos ind(e) VI casales 13 c(ũ) torto. E podedes saber como man-
[14] do dũ Gõcauo a sua morte. D(e) XVI casales d(e) Ueracin que < d(e) > fructar(ũ) e que li
[15] nunq(u)a ĩd(e) der[ũ] q(u)innõs. E d(e) VII e medio casaes antre Coina e Bastuzio und(e) li
[16] nunq(u)ã der(ũ) q(u)iniõ. E d(e) tres i(n) Tefuosa und(e) li nu[n]q(u)a ar der[ũ] nada. E IIos i(n) Figeeree-
[17] do unnd(e) nũq(u)ã14 li der(ũ) q(u)inõ. E IIos i(n) Tamal ũd(e) li n(õ) ar der(ũ) q(u)inõ. E da sena-
[18] ra d(e) Coina ũd(e) li n(õ) ar der)ũ) q(u)inõ. E d’uno casal d(e) Coina que leuar(ũ) ĩd(e) III anos
[19] o frouctu c(ũ) torto. E por istes tortos que li fecer(ũ) tem q(u)a a seu plazo quebrãtado
[20] q(u)a li o deuẽ por sanar. E d(e)pois ouer(ũ) seu mal e meteu o abad(e) paz a[n]tre illes
[21] i(n) no carualio d(e) Laureedo. E rogouo o abate tãto que beiso c(ũ) illes. E der(ũ)li
[22] XVIIII morabitinos q(u)i li filar(ũ). E d(e)pos iste p(lec)toe pre[n]d(e)r(ũ)< li >15 o seruical otro
[23] om(e) d(e) sa casa e troser(ũ)no XVIIII dias p(er) mõtes e fecer(ũ)les tã máá prisõ
[24] p(er) que leuar(ũ) deles q(u)ãto poder(ũ) au(e)r. E d(e)pois li d(e)sũro Gõcauo Gõcauiz
[25] sa fili[a] pechena. E irmar[ũ]li XIII casales und(e) perdeu fructu. E isto
[26] fui d(e)p < ois > que fur(ũ) fíídos anto abate. E d(e)pois que fur(ũ) ĩfiados por iuizo d(e) ilo
[27] rec.16 E nũq(u)a ille fez(e) neun mal por todo aqueste e fezeles taes agudas17
[28] q(u)ales aqui ouireedes. Sup(er) sua aguda fez testiuigo c(ũ) Gõcauo Cebolano.
[29] E sup(er) sa aiuda ar fuili a casa e filoli q(u)ãto que li agou e deu a illes. E sup(er) sa
[30] aiuda oue testifigo c(ũ) P(e)tro Gomez, omezio q < v > e li custou maes 18 ka C m(orabitinos).
[31] E sup(er) sa aiud[a] oue mal c(ũ) Goncaluo Gomez que li custou multo da au(e)r
[32] e muita perda. E in19 sa aiuda oue mal c(ũ) Go[n]caluo Suariz. E in sa aiuda
[33] oue mal c(ũ) Ramiro Fernãdiz que li custov muito au(e)r muita perda.
[34] E in sa aiuda fui IIas fezes a Coi[m]bra. E in sa aiuda dixe mul[ta]s uices
[35] e ora in ista tregua fur(ũ) a Ueracĩ amazar(ũ)li os om(éé)s erma[rũ]li X casaes
[36] seu torto al rec.p E sup(er) saiud[a] mãdoo lidar seus om(éé)s c(ũ) Mar-
[37] tint20 I(o)h(a)n(e)s que q(u)ir[i]a d(e)sũrar sa irmana. E cũ ille e cũ sa casa
[38] e cũ seu pam e c(ũ) seu uino uẽcestes uosa erdade. E cũ ille
[39] existis d(e) sua < casa > in ipso die que uola q(u)itar(ũ). E ille teue a uosa
[40] rezõ. E ot(r)as aiudas multas que fez. E plus li a custado
[41] uosa aiuda q(u)a li21
inde cae d’erdad[e]. E subre becio e sup(er)
[42] fíím(ẽ)to se ar q(u)iserdes ouir as desõras q < v > e ante ihc fur(ũ)
[43] ar ouideas: Vener(ũ) a uila e fila[rũ]li o porco ante seus filios e com-
[44] erũsilo. Vener(ũ) alia uice er filar(ũ) ot(r)o 22 ante illes
[45] er comer(ũ)so. Vener(ũ) i(n) < alia > uice er filiar(ũ) una ansar ante
[46] sa filia er comer(ũ)sa. I(n) alia uice ar filiar(ũ)li o pane ante
[47] suos filios. I(n) alia uice ar ue[ne]r(ũ) hic er filar(ũ) ĩde o uino
[48] ante illos.
Verso do pergaminho
[49] otra uice (?) uener(ũ)li filar ante seus filios q(u)ãto q < v > e li agar(ũ) i(n) quele
[50] casal. E fur(ũ)li23 u ueriar (?) e p(ren)der(ũ) ĩd(e) o cõlazo und(e) mamou o lec-
[51] te e gacar(ĩ)no e getar(ĩ) i(n) t(er)ra polo cecar e le[ua]r(ũ) delle q(u)ãto oue.
[52] I(n) alia uice ar fur(ũ) a Feracĩ 24 e p(ren)d(e)r(ũ) IIos om(éé)s e gacarũnos e le< ua >r(ũ)
[53] deles q(u)ãto que ouer(ũ). I(n) ot(r)a fice ar p(ren)der(ũ) ot(r)os IIos a se[u] irmano
P(e)lagio
[54] Fernãdiz e iagar(ũ)nos. I(n) ot(r)a ue[ne]r(ũ) a Pegeiros (?) e leuarũso III om(éé)s 25
[55] ante P(e)lagio Fernãdiz.
- Nesta palavra e em várias outras o s final vem na entrelinha ou em expoente, assemelhando-se ao sinal abreviativo de er.
- Na palavra au(e)r (= haver) e em outras usa um sinal abreviativo parecido com um til em posição quase vertical, podendo indicar a falta de e ou de outras letras e até de sílabas.
- Segue-se um ponto e uma palavra riscada.
- No texto: acanocerse com o r riscado.
- Em rigor, a abreviatura desta palavra devia desdobrar-se em p(re)to, mas prefiro p(lec)to, porque é este o sentido e é assim que vem, por extenso, na linha 7.
- Seguem-se, raspadas, umas letras que parecem ser oct(r)aa.
- Vem a seguir um d e uma mancha que cortam o sentido do texto.
- Neste caso e em outros idênticos, desdobrei a abreviatura em nunq(u)ã, porque a haste do q está cortada por um traço transversal a indicar vogal nasal. Faltando o traço, desdobrei em nunq(u)a.
- se e não le, porque a primeira letra é um s alto e não um l.
- Seguem-se a Laurẽ traçadas e uma mancha.
- Cfr. p. 206, observação n.º 4.
- Segue-se um a traçado.
- Seguem-se quãtro er traçadas.
- No texto está: nũ nada q(u)ã, mas com a palavra nada traçada.
- Segue-se on traçado
- Por rex (rei).
- Em vez de taes, como pede o contexto, parece estar ta e qua, ambas riscadas. Neste e em casos idênticos, o g tem valor fricativo antes de a, alternando, por isso, com i consoante: aguda e aiuda (=ajuda).
- Segue-se uma letra riscada.
- Aqui e nos três casos análogos seguintes, em vez de E in, poder-se-á ler Em.
- No texto: Marmtin, com o segundo m riscado.
- Também pode ler-se: q(ua)li ind(e).
- Pedro de Azevedo leu «o t(rig)o». Não me parece aceitável desdobrar assim a abreviatura otº, cuja leitura exacta deve ser ot(ro), palavra que vem por extenso na linha 22 e em abreviatura nas linhas 5 e 6 do verso do pergaminho. A leitura ot(ro) (= outro porco) está mais de acordo com o contexto, porque o porco vem mencionado algumas palavras antes e o trigo deve estar incluído na palavra pane da linha 46.
- Segue-se um o traçado.
- Por Veracĩ (= Varzim).
- Nas últimas cinco palavras segui a leitura e interpretação de Pedro de Azevedo, por estarem quase ilegíveis no original.