A escritura de Flamula Pelagius

Tradução do latim feita pelo Dr. António de Sousa Pereira, em 1953, nas comemorações dos 1000 anos de Vila do Conde1.

carta flamula 1
Documento original, de 26 de Março de 953 d.C.

Em nome do Senhor. Eu, Flámula, filha de Pelágio e Ibéria. A vós, Abade Gonta e irmãos e irmãs que habitais no cenóbio de Guimarães, saúde no Senhor. Amen.

Em verdade, a minha consciência aprova que, de coração desinteressado e por minha própria vontade, vos faça, como faço, esta escritura de venda e segurança das nossas próprias vilas que temos à beira do mar, junto do rio Ave, para baixo do monte de Terrozo. Isto é a “villa de comite” (Vila do Conde) tal como confronta com a “villa fromarici” e com a “villa euracini” e ainda com a água do mar, segundo os seus antigos limites, íntegros, vos concedemos com suas salinas e pesqueiras e igreja construída no castro chamado de S. João, por todos os seus limites e com todos os rendimentos que produza.

E concedemos-vos outra vila chamada “quintanella”, inteiramente pelos seus limites, tal como confronta com a “villa fromarici” e com a “villa tauquinia” conforme os marcos de pedra, e confronta com a “villa argevadi” e com a “villa anserici” e depois, pelo caminho mourisco até ao marco que está no cimo da vila e desde aí até à orla do mar para tornar ao limite de Formariz, onde primeiro começamos.

Pomares, figueirais, águas correntes e paradas, e todo o rendimento que que produza inteiramente vos concedemos com todos os seus rendimentos, segundo as obtiveram nossos pais Pelágio e Ibéria assim como a nossa geração, vos damos com as próprias vilas para que beneficieis deles.

Aqui estão os filhos de “baltario” e de “trasilli” e os filhos de “gresulfo”, de “genilli” e de “gondulfo”. E recebemos de vós duas mulas mansas, uma saia “fazanzal” (palavra esta que não nos foi possível esclarecer)2 com sua badana de tiraz e manto de pele de esquilo com seu pano “fazanzale”, um vaso com imagens e dourado, duas peles de jumento. Que se faça por mil soldos nos satisfaz.

E para que de hoje para todo o sempre tudo seja, por nosso direito, raso e inteiramente transferido para o Mosteiro de Guimarães e confirmado para servir para sempre. Se, todavia, o que não cremos que aconteça, algum homem vier desfazer o por nós aqui feito e nós não nos podermos justificar em juízo, ou vós pela nossa palavra, daremos em substituição das nossas próprias vilas, e segundo o juiz da terra, dois talentos de oiro. E que este nosso acto tenha em tudo validade.

Dado no sétimo dia das Kalendas de Abril. Era de 9913.

Flámula deovota nesta carta de venda e segurança feita pela minha mão.

Seguem-se os respectivos sinais, com os nomes dos demais intervenientes, das testemunhas e da pessoa que escreveu o documento.

carta flamula 2
Cópia de finais do século XII, bem mais legível

Original:

Portvgaliae Monvmenta Historica
Edita III – Diplomata e Chartae volvmen I fascicvlvs I (1867) pp. 38-39

Flamula Deo-vota vendit Monasterio Vimaranensi duos pages, Villa de Conde et Quintella, aliaque bona cum servis ibidem habitantibus. Ex autographa charta olim in scrinio Collegiatae Vimaranensis, nunc in Publico Archivo servata.

In nomine domini. Ego flamula prolis pelagius et iberia. Uobis gonta abba et fratres et sorores habitantes cenouio uimaranes in domino salutem amen.

Annuit nanque serenitatis mee asto animo et propria mea uoluntate ut facerem uobis sicuti et facio textum scripture uenditionis et firmitatis de uillas nostras proprias quos habemus in ripa maris prope ribulo aue subtus montis terroso. id est uilla de comite quomodo diuidet cum uilla fromarici et cum uilla euracini et inde per aqua maris usque in suos terminos antiquos ab integro nobis concedimus cum suas salinas et cum suas piscarias et ecclesia que est fundata in castro uocitato sancto iohanne per suos terminos ab integro uobis illa concedimus cum omni sua prestancia quicquid in se oblinet.

Et concedimus vobis alia uilla uocitata quintanella ab integro per suos terminos quomodo diuidet cum uilla fromarici et uilla tauquinia et perge ad archa de petri  et diuide cum uilla argeuadi et cum uilla anserici et inde per carraria maurisca et inde ad archa qui sta super ipsa uilla et inde in aula maris et torna ad termino de fromarici ubi prius inquoabimus.

Pomares ficares aquas cursiles uel incursiles et omni sua prestancia quicquid in se obtinet ab integro uobis concedimus cum cunctis prestationibus suis secundum eas obtinuerunt genitores nostri pelagius et iberia sic et nostra criazone uobis damus in ipsas uillas et ut eis benefaciatis.

Id sunt filios de baltario et de trasilli. et filios de gresulfo et de genilli et de gondulfo. Et accepimus de uos IIª mulas placiuiles. I saia fazanzal cum sua uatanna tiraz manto azingiaue cum suo panno fazanzale. I° uaso inmaginato et exaurato. IIª pelles anninias. fiunt sub uno mille solidos ipsum nobis hene conplacuit.

ita ut de hodie die et in omni tempore sit omnia de iuri nostro abraso ab integro. et ad parte monasterii uimaranes sit traditum atque confirmatum perenniter desorbiendum. Siquis tamen quod fieri non credimus aliquis homo contra hunc factum nostrum ad inrumpendum uenerit que nos in iudicio deuindigare non potuerimus aut uos in uoci nostre quomodo duplemus uobis ipsas villas et ad parte iudicis terrc auri II° talentum. et hoc factum nostrum in cunctis obtineat firmitatis roborem. Nodum die VII kalendas aprilis. Era DCCCCLXXXXI.

Flamula deouota in hanc cartula uenditionis et firmitatis a me facta manu mea | Hoduarius aloitiz manu mea | Alderetto senioriniz manu mea | Lucidus confrater manu mea | Pelagius arianiz manu mea | Eidinus presbiter manu mea | Gundesindus zanoniz manu mea | Froila chrisliniz manu mea | Gundemiro manu mea

Aloitus cellenouensis manu mea | Amarellus manualdi manu mea | Iaffar sarraciniz manu mea | Palatinus armentari et presbiter | Arias diaconi manu mea | Adefonso test | Menno test | Christoualo test | Zonio test | Vermudo test | Zidi guntemiriz test | Quiriaco test | Iouito test | Guntemiro test

Airigus astrulfi manu mea

  1. Boletim Cultural da Câmara Municipal de Vila do Conde, nº 1, 1ª série
  2. Fazanzal é um tecido persa com origem na cidade de Fasa (actual Irão)
    Adalberto Alves – Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa (2013) p. 500
  3. Era de César, que dista 38 anos da era de Cristo. No calendário romano, esta data indica que ao sétimo dia (contagem inclusiva) se iniciaria o mês de Abril, ou seja, seis dias depois.
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