O Dia de Vila do Conde

Sérgio Paiva – 26/Mar/20

Vinte e seis de Março é o dia em que se comemora o “Dia de Vila do Conde”. Completa-se nesse dia o aniversário da redacção do documento mais antigo que faz menção à nossa Vila do Conde (clique para tradução) com uma nomenclatura muito próxima à atual. Esse documento, de 26 de Março do ano de 953 d.C., é comummente referenciado como o batismo de Vila do Conde. Este manuscrito, cujo original1 e uma transcrição de finais do século XII2 se encontram nos arquivos da Torre do Tombo, é uma escritura de venda por parte de Flamula Pelagius (Chamoa Pais) ao abade Gonta e seus irmãos e irmãs do cenóbio duplex (de monges e freiras) de Guimarães, o qual deu origem à Colegiada de Santa Maria da Oliveira de Guimarães3.

carta flamula 1
Documento original, de 26 de Março de 953 d.C.
carta flamula 2
Cópia de finais do século XII, bem mais legível

Dessa venda fazem parte duas villas; a Villa de Comite, ou Villa Comitis (futura Vila do Conde) e a Villa Quintanella (actual lugar de Quintela, Argivai, Póvoa de Varzim). Para além destas, há também referência a confrontações com outras villas, nomeadamente a Villa Fromarici (lugar e antiga freguesia de Formariz, actualmente parte integrante da freguesia de Vila do Conde), Villa Euracini (Póvoa de Varzim), Villa Tauquinia (Touguinha), Villa Argevadi (Argivai) e Villa Anserici (Anseriz, topónimo que se perdeu, presumivelmente também localizada em Argivai4).

Esta escritura ajuda-nos a reconstruir um pouco da história de Vila do Conde nos séculos anteriores, ainda que com alguma margem de erro. Depreende-se que haveria um “Castro de São João“, no monte da margem norte do rio Ave, onde se situa actualmente o edifício do antigo Mosteiro de Santa Clara. Esta povoação castreja teria origem na ocupação celta5 da Península Ibérica (meados dos primeiro milénio a.C). O castro teria já, à data da escritura, uma igreja dedicada a São João (São João Apóstolo e Evangelista, não o nosso actual padroeiro São João Baptista6), construída presumivelmente após a Reconquista Cristã (séc. IX d.C.)7. Os suevos, no concílio de Lugo de 569, referiam a existência do Castro aquando da divisão do seu reino em paróquias e dioceses. A diocese de Braga teria o seu limite a sul seguindo “pelas águas do Ave até ao castro”. Tais delimitações foram registadas no “Parochiale Suevorum” e reproduzidas no “Liber Fidei8” do arcebispado de Braga.

Entre celtas e suevos, outros povos fizeram de Vila do Conde sua terra, com destaque para os romanos, que deixaram vestígios físicos da sua presença um pouco por todo o concelho, e até na toponímia. Mas acerca disso teremos um artigo específico. No Castro de São João, o único da cidade, não há provas da sua romanização. O monte de São João, a zona onde se encontra o edifício do antigo mosteiro, o próprio edifício e seus precursores, sofreram muitas modificações e grandes remodelações ao longo dos tempos, a última delas já em pleno século XX (1936-40), quando o edifício que vemos actualmente estava semi-arruinado e sofreu uma grande intervenção patrocinada pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais9. Pompónio de Mela, em De Situ Orbis, refere que os gróvios habitaram esta zona, desde o Douro até acima dos limites da actual fronteira setentrional entre Portugal e Espanha10, sendo o seu ópido principal a actual cidade de Tuy11, na Galiza. Os gróvios, uma tribo celta12, podem ter sido o povo que construiu o tal Castro, mais tarde denominado de S. João, o topónimo mais antigo do qual há registo, desta terra que eventualmente tomou o nome de Vila do Conde.

A carta assinala os limites da villa, fáceis de identificar nos nossos tempos. Para além de rio e mar, tinha a Póvoa de Varzim a norte e Formariz a nascente. Diz ainda que estes seriam os seus limites antigos, o que naquele tempo significaria que os mesmos teriam sido demarcados no tempo dos romanos, sobrevivendo essas fronteiras às invasões e conquistas que se verificaram ao longo do primeiro milénio d.C., conservando-se as mesmas, tal como ordenava o Código Visigótico, para assim ser facilitado o lançamento dos tributos.13.

Flamula revela-nos que, no seu tempo, já os poucos habitantes da Villa de Comite teriam pequenas indústrias de produção de sal e armações de pesca (“cum suas salinas et cum suas piscarias”). Evidentemente, aproveitando a localização privilegiada entre rio e mar, retirariam daí o seu sustento, fixando-se no topo para residir, espaço mais seguro nestes tempos tumultuosos, e descendo a encosta diariamente para laborar.

Mais de mil anos depois, pouco ou nada resta. O castro já há muito lá não está, no cimo do monte, provavelmente desde que D. Afonso Sanches e D. Teresa Martins fundaram o Real Mosteiro de Santa Clara, em 1318. Foram descobertos vestígios de ocupação pré-romana nas escavações arqueológicas realizadas para a remodelação do Mosteiro, tendo em vista a sua reabilitação para hotel. Tampouco se vêem as salinas e pesqueiras que refere Flamula. Os limites, esses, continuam semelhantes, se descontarmos a anexação de Formariz em 1867, paróquia e freguesia independente, até aí do concelho de Barcelos.

  1. Documento original
  2. Cópia do final do século XII
  3. Colegiada de Santa Maria da Oliveira de Guimarães
  4. Mário Jorge Barroca – Inscrições Medievais e Modernas de Vila do Conde (séculos XV a XVII) – Portvgalia (nova série) vol. XXXVIII (2017) p. 128
  5. Direção-Geral do Património Cultural
  6. Isto não é explícito neste documento, mas sim num outro, do século seguinte: o inventário de bens do Mosteiro de Guimarães. Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, v.I, f.II, p.258 (nº 420)
  7. Direção-Geral do Património Cultural
  8. …per illam aquam de Ave usque in Castro.
  9. Para mais informações, consultar o Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, nº 14 (Santa Clara de Vila do Conde)
  10. Pomponii Melae – De Situ Oribs, Libri Tres, p. 105
  11. España Sagrada Tomo XXI, Tratado LXI de la Iglesia de Tuy Capitulo I, p.3 – “La situacion de Tuy fue como dice Plinio, en el territorio de los Gravios, que era porcion poblada por los Griegos, y la capital fue Tuy, por lo que Plinio, y Ptolomeo se contentaron en los Gravios, o Grovios, à esta sola Ciudad.”
  12. José Leite de Vasconcelos – O Archeologo Português. Vol. XIV (1909), pp. 131-132
  13. Mons. J. Augusto Ferreira – Villa do Conde e seu Alfoz (1923) – pp. 11-12
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