Toponímia de Vila do Conde (parte 4)

Sérgio Paiva – 23/Jul/19

O último conde que iremos analisar é também ascendente direto de Flamula e os seus filhos possuiam propriedades em terras próximas a Vila do Conde. Numa publicação recente, de 2013, encontra-se mais um pretendente ao título de “conde da Villa“.

“É provável que o seu primeiro donatário tenha sido o conde Afonso Betote ou, em alternativa, o conde Ero Fernandes, ambos antepassados familiares de D. Flâmula Pais, uma rica proprietária local dos meados do séc. X. (…) Embora a tendência seja para endossar a responsabilidade do nome atribuído à atual sede do concelho, à linhagem condal do ramo masculino, o certo é que os bens de Flâmula podem ter-lhe chegado às mãos, mais provavelmente, através da herança materna. Contra a corrente maioritária, inclinamo-nos antes para esta hipótese, já que outros filhos de Ero Fernandes possuíram também propriedades no vale do Ave.”
Manuel Real
Vila do Conde, Tempo e Território (2013) p. 84

1.5 – Ero Fernandes, conde de Lugo

O conde Ero Fernandes era bisavô de Flamula, avô de Iberia Gonçalves e pai de Teresa Eris. Nada se sabe sobre a sua ascendência, para além de ser filho de um Fernando, devido ao seu patronímico. O mesmo se passa com outro conde seu contemporâneo, Diogo Fernandes, levando a crer que os dois seriam irmãos1. Diogo era pai de Mumadona Dias, fundadora do Mosteiro de Guimarães, ao qual Flamula vendeu a Villa de Comite em 953.

Voltando a Ero. Apesar de nada se saber da sua ascendência, a sua descendência é bem documentada. Como refere Manuel Real, os seus filhos Gondesendo e a já referida Ilduara, nora de Hermenegildo Guterres, tinham posses em locais próximos de Vila do Conde. O primeiro em Lavra, a segunda em Santo Tirso, onde nasceu o seu filho Rosendo, canonizado no século XII. Pode ser possível que estas terras pertencessem a Ero, incluindo aqui a Villa de Comite, a qual teria sido herdada sucessivamente por Teresa Eris, Iberia Gonçalves e Flamula Pelagius.

Como apoio a esta teoria, supõe-se que a toponímia de São Romão de Arões, vila do concelho de Fafe e limítrofe de Guimarães, tenha origem neste conde. A palavra Eronis (“de Ero”) terá sido transformada em Arões por evolução fonética, ao longo dos séculos2. Coincidentemente (ou talvez não), um dos lugares da antiga freguesia de Mosteiró chama-se exatamente Arões. Será que a origem é a mesma? Será que este Ero tinha propriedades em lugar tão próximo que nos dias de hoje faz parte do concelho de Vila do Conde? Poderia também ser outra origem ou ainda outro Ero…

Enfim. São muitos os nomes apontados à origem do topónimo “Vila do Conde”. Vários condes que podem ser considerados “o” conde da Villa. Como já vimos, e face à inexistência de provas documentais que assegurem a origem do nome, os limites para a sua busca ladeiam por vezes os da imaginação de cada autor. Há nomes que podem ser liminarmente descartados (como os de D. Mendo e de Pelagio Vermudes), outros que surgem mais recentemente mas com forte base de sustentação (Ero Fernandes), outros mais apoiados por diversos historiadores ao longo das últimas décadas, os principais presores asturianos ancestrais de Flamula (Vímara Peres, Afonso Betote e Hermenegildo Guterres). Mais nomes poderiam ser adicionados, como Lucídio Vimaranes (filho de Vímara Peres e bisavô de Flamula), Pelagio e Hermenegildo Gonçalves (tios de Flamula, irmãos de Iberia), Guterre Mendes (tio-avô de Flamula por afinidade), Diogo Fernandes (possivelmente tio-bisavô de Flamula, caso se confirmem as suposições de ser irmão de Ero), ou tantos outros condes da progénie de Flamula. Se há coisa que não falta, são condes medievais com posses ou influências nas regiões próximas a Vila do Conde, muitos deles parentes diretos ou afastados de Flamula, proprietária de Vila do Conde no ano de 953. Resumindo, isto é tudo o que sabemos, tudo o resto são suposições às vezes mais e outras vezes menos fundamentadas.

Um facto que apoia a teoria de ter sido um destes condes, presores da Reconquista Cristã, a dar o nome a Vila do Conde, assenta na cronologia do topónimo. No Paroquial Suevo do século VI, quando se define as fronteiras da diocese de Braga, muitas localidades são identificadas pelo seu nome e ainda hoje mantêm os seus topónimos: Lindoso, Portela do Homem, Vila Chã do Marão, Burgães… Chegando ao limite sul/poente, apenas é referido que o limite segue o rio Ave “até ao castro”, inominado, que seria sem dúvida o de São João. Isto pode significar que neste tempo a localidade não teria grande relevância, estando possivelmente despovoada, e sem grande margem para dúvida ainda teria adquirido o topónimo que chegou aos dias de hoje.

Para terminar este capítulo, deixo-vos com uma imagem que poderá facilitar a compreensão da relação de Flamula com os condes analisados, nomeadamente Vímara Peres, Afonso Betote, Hermenegildo Guterres e Ero Fernandes.

Apresenta-se assim a árvore genealógica mais provavel de Flamula, segundo os historiadores Emilio Saez Sanchez3 e José Mattoso4, simplificando-a mostrando apenas as ligações parentais mais diretas entre Flamula e os condes que analisámos, omitindo sucessivamente os ascendentes, caso estes não fossem um elo de ligação aos referidos condes. Omitem-se também outros condes que referi de forma mais fugaz, para não tornar a árvore mais complexa, casos dos irmãos de Ibéria e de Ero.


Vamos agora começar a análise das outras teorias que não envolvem os parentes de Flamula do tempo da Reconquista Cristã.

Uma nova hipótese foi apresentada no dia 5 de Dezembro de 2008, no auditório da Biblioteca Municipal. Armando Coelho Ferreira da Silva, professor catedrático e especialista em história castreja, afirma que a palavra “Conde” poderá ter origem na palavra céltica condate, que significa confluência de rios. No caso de Vila do Conde, a dos rios Ave e Este. Assume-se que o castro construído no monte tem origem céltica. Mais tarde denominado Castro de São João, tal como referido na escritura de Flamula, entre outros documentos. Porque não terá também a toponímia de Vila do Conde a mesma origem?

2 – Conde provém de condate, termo celta para confluência de rios

Esta teoria é reafirmada pelo mesmo autor, anos mais tarde.

“As comunidades castrejas do Vale do Ave comporiam, segundo a nossa leitura do povoamento regional, o grupo étnico dos Nemetati, referido na geografia de Ptolomeu, integrando quatro lugares centrais com respectivos castros dependentes, em torno de um santuário central, em conformidade com um modelo cosmológico de origem indo-europeia assimilada nos comportamentos célticos. Bagunte, sinónimo de combatente; Rates, com significado referente a muralhas; Conde, derivando provavelmente de Com-da-ti > Condate > Condade > Conde, com aproximação ao culto das confluências no universo céltico, poderão constituir um pacote linguístico caracterizador da pertença étnica do substrato pré-romano.”
Armando Coelho Ferreira da Silva
Vila do Conde, Tempo e Território (2013) p. 69

O atual concelho de Vila do Conde, no tempo dos povos indo-europeus, anteriores à romanização, já teria vários castros. Pelo menos dez centros populacionais são conhecidos, podendo-se assumir a hipótese quase óbvia de que mais alguns terão existido, dos quais não chegaram vestígios aos dias de hoje, mais de dois milénios após a época que aqui estudamos.

Dos castros conhecidos, pelo menos os de Retorta e Santagões têm uma posição geográfica mais próxima da foz do rio Este, onde existe a confluência referida por Armando Coelho que teria originado o nome. Outros têm uma distância semelhante, como os de Casais e Argifonso, adjacentes à Cividade de Bagunte. Por que razão terá o Castro de Vila do Conde, muito mais tarde denominado de São João, adquirido este nome em função de um acontecimento geográfico tão distante? É certo que há algumas localidades que têm a origem da toponímia neste termo gaulês, tais como:

Rennes: Condate Redonum (confluência dos Redones, tribo celta) – confluência dos rios Ille e Villaine5
Lyon: Condate (uma pequena povoação na parte baixa da actual metrópole) – confluência dos rios Saône e Ródano6
Millau: Condatomagus (mercado da confluência) – confluência dos rios Tarn e Dourbie7
Kontich: Condacum – nome romanizado, com o mesmo significado, confluência dos rios Rupel e Escalda8. Em breve iremos analisar detalhadamente a toponímia desta cidade belga, na secção “As Outras Vilas de Condes”.

Muitas outras terras de menor dimensão partilham esta origem do topónimo, quase todas elas localizadas no norte do actual território francês, área de maior e mais prolongado domínio dos povos celtas. Embora esta teoria tenha argumentos fortes e factuais, peca em duas razões principais: por um lado, a distância do Castro eventualmente denominado de São João para a foz do rio Este é significativa, quase 4 quilómetros em linha recta, o que parece demasiada para dar nome a uma povoação, junto ao facto de que existiriam outras bem mais próximas. Por outro lado, sabe-se que Vila do Conde era denominada de Villa de Comite e Villa Comitis no período medieval, topónimo com origem bem identificada (conde, e não confluência).

Na última parte (a quinta) desta análise à origem do nome “Vila do Conde” irão ser apresentadas mais três hipóteses, a última das quais fará a ponte para a introdução de uma secção nova (“As Outras Vilas de Condes”), que poder-nos-á ajudar a desvendar o mistério da toponímia de Vila do Conde.

Toponímia de Vila do Conde (parte 1)
Toponímia de Vila do Conde (parte 2)
Toponímia de Vila do Conde (parte 3)
Toponímia de Vila do Conde (parte 5)

  1. Emílio Saez – Los Ascendientes de San Rosendo (1947) p.49 nota 96
  2. Arlindo Ribeiro da Cunha – Arões e a sua Igreja (1950)
  3. Emílio Saez – Los Ascendientes de San Rosendo (1947)
  4. José Mattoso – As Famílias Condais Portucalenses dos Séculos X e XI (1970)
  5. Encyclopaedia Universalis France
  6. Descriptif et Guide du Secteur UNESCO de Lyon
  7. Encyclopédie de l’Arbre Celtique
  8. Infogids Kontich 2009
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